quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Alegria misturada com angústia

Histórias de família inspiram a vencedora do Prêmio Barco a Vapor 2010
Pluricom Informa, 20/10/2010


Nenenzinha é ainda uma pequena menina e já é tia de quatro crianças órfãs, maltratadas pela madrasta Delminda. Mas Nenenzinha tem um segredo: o segredo de família que a ajudará a amenizar o sofrimento de seus sobrinhos. Esse é o ponto de partida para o texto de ficção A menina guardiã dos segredos de família, vencedor do 6º. Prêmio Barco a Vapor. De estrutura contemporânea, não linear, a obra criada pela escritora mineira Stella Maris Rezende é rica em recursos de linguagem.

Stella, que adora se encontrar com seus leitores em escolas e debates, conta na entrevista a seguir que essa história é inspirada nas aventuras e nos desafios que sua mãe enfrentou na infância. A história A menina guardiã dos segredos de família foi selecionada entre mais de 500 originais como vencedora do 6º Prêmio Barco a Vapor e será publicada por Edições SM. As inscrições para a sétima edição do prêmio estão abertas até o dia 30 de dezembro – o regulamento pode ser encontrado no site www.edicoessm.com.br.

Quem inspirou A menina guardiã dos segredos de família?
A inspiração veio da história da minha mãe, que ficou órfã de mãe bem cedo, foi abandonada pelo pai sanfoneiro e acabou sendo criada pelos tios, que eram primos e casados. Nenenzinha, personagem principal do texto, foi inspirada na Nenenzinha que existiu de fato, a tia da minha mãe, que era ainda uma menina quando resolveu ajudar na criação dos sobrinhos: minha mãe e seus três irmãos. Vários outros detalhes do texto aconteceram realmente, como a inundação da cidade de Morada Nova, em Minas Gerais, na década de 1960. As águas da represa de Três Marias invadiram a cidade e quase a destruíram completamente. Muita gente perdeu casa, plantação e gado. Ou seja, a maior parte dos fatos aconteceu mesmo, e foi emocionante transformar tudo em literatura.

Como surgiu a ideia de escrever o texto?
Não programei escrever esse texto. Aos poucos, ele veio chegando, veio se afirmando, querendo tomar forma literária. Trabalhei nele durante uns quatro anos.

Sua história aborda temas como orfandade, exploração do trabalho infantil dentro de casa, vaidade (da madrasta), entre outros. Qual a importância de falar sobre tais assuntos?
Esses assuntos fazem parte da história da minha mãe e dos meus tios, que sofreram muito quando crianças. Naquela época e ainda hoje, em muitas famílias brasileiras, as crianças são obrigadas a trabalhar duramente. A madrasta também existiu, e era mesmo rigorosa, exigente ao extremo. O padrasto também existiu e era padeiro de fato. Eu apenas acrescentei mistérios e segredos, trabalhei a história por meio de uma linguagem poética, soltei a imaginação e me deixei levar pela magia das palavras. A importância de falar sobre esses assuntos está na necessidade de se denunciar as injustiças, com o sonho de que as coisas mudem e as pessoas aprendam a viver com dignidade e respeito pelos direitos humanos.

Quais os paralelos com os contos de fadas tradicionais, como a Cinderela?
Desde criança, eu sempre pensei que a história da minha mãe se parecia com os contos de fadas. Obrigada a trabalhar para a madrasta, a minha mãe era linda, vestia-se com simplicidade e sonhava com um príncipe encantado. Vários detalhes da história da Cinderela não aparecem na história da minha mãe, é claro. Mas a essência é a mesma. A fada que aparece para a Cinderela é a tia Nenenzinha, a tia menina que salva a minha mãe da tristeza e do desejo de vingança. Alguns detalhes do meu texto lembram ainda os contos João e Maria, Branca de Neve e A bela adormecida no bosque. A ideia de que a criança pode ser salva por um encantamento é um elemento muito forte.

O que há de mais gratificante em escrever para crianças?
Escrever é sempre uma grande alegria misturada com muita angústia, mas escrever para crianças e jovens é mais instigante, mais difícil e mais desafiador. Quando vejo que um texto meu está se encaminhando para o público infantojuvenil – o mais exigente e o mais sincero –, me sinto mais solta, mais leve, mais contente, mais livre. Deixo-me levar pela imaginação e fico firme no meu projeto estético, ou seja, não abro mão da qualidade literária. Depois do livro editado e lido, o contato com crianças e jovens é sempre maravilhoso, por meio de cartas, e-mails ou encontros em escolas. Crianças e jovens fazem perguntas inteligentes, não têm medo de conversar sobre quaisquer assuntos; são sensíveis, francos e amorosos.

Há algum cuidado que deva ser tomado ao se escrever para o público infantil?
É preciso ter o cuidado de sempre quando se trata de literatura: trabalhar a linguagem, exigir qualidade literária, lidar com metáforas, imagens, elipses, deixar que as palavras e os silêncios suscitem diferentes leituras.

Como você acredita que a leitura possa ser estimulada entre crianças e jovens?
Por meio do encantamento. Ao ouvir histórias contadas com arte, crianças e jovens são levados a um estado de encantamento que atiça o sonho, a imaginação e o desejo de transformar o mundo num lugar melhor. Uma história bem contada tem magia, tem poder de reinvenção do mundo, estimula o questionamento e a alegria de viver.

Há quanto tempo você desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita?
Desde pequenininha, quando ouvia minha mãe contar histórias e casos. Depois, ao entrar na escola, tive professores maravilhosos, que liam e contavam histórias, recitavam poemas, me levavam à biblioteca, enchiam a minha vida de alegrias e sonhos.

Que livros marcaram sua infância e adolescência?
Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll; Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato; a narrativa tradicional e todos os contos de fadas; Clarissa e Música ao longe, de Érico Veríssimo; Vidas secas, de Graciliano Ramos.

Que autores a influenciam? Por quê?
Machado de Assis, Cecília Meireles, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa. Pelo trabalho com a linguagem, pelo projeto estético, pelo desejo de desvendar a alma humana.

Por que optou por se dedicar à literatura infantil?
Não foi uma opção consciente e objetiva. A literatura infantojuvenil foi uma descoberta, um chamado, um encantamento que me arrebatou.

Quais foram os desafios em sua carreira?
Vários, evidentemente. O mais importante deles se fundamenta na minha maneira de escrever, no meu projeto estético. Alguns críticos dizem que não escrevo para crianças, porque meus textos são complexos e muito trabalhados. Eu continuo dizendo que escrever para crianças e jovens não significa abrir mão da arte literária. Crianças e jovens são sensíveis e inteligentes, adoram um texto bem escrito, instigante, carregado de significados, mistérios, segredos e dramas humanos.

Quais os temas mais presentes em suas obras? Por quê?
O mistério da existência humana, os conflitos familiares, as injustiças sociais, o ódio, o amor, a vingança, a inveja, a mesquinhez, a amizade; porque são temas universais.

Já ganhou outros prêmios antes do Barco a Vapor? Pode falar um pouco do impacto que os prêmios tiveram em sua carreira ou sua obra?
Ganhei por três vezes (1986, 2001 e 2008) o Prêmio João-de-Barro, que é o mais tradicional em literatura infantil e juvenil brasileira. Em 1988, o Bienal Nestlé, categoria infantojuvenil. Em 2002, o Redescoberta da Literatura Brasileira/Revista Cult, categoria conto. Em 2007, o Literatura Para Todos/MEC/OEI, categoria conto. Grande parte dos meus livros recebeu o selo de “Altamente Recomendável para Jovens” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e vários foram selecionados para os programas de leitura do governo, como o Programa Nacional Biblioteca na Escola/MEC. Três foram indicados ao Jabuti. Todos esses prêmios me tiram do sufoco financeiro e me incentivam a continuar o meu trabalho, o meu sonho, o meu projeto estético.

Por que decidiu concorrer ao Prêmio Barco a Vapor da Fundação SM?
Sonhei em ganhar o Prêmio Barco a Vapor desde que ele chegou ao Brasil em 2005. Trabalhei duro. Participei do concurso por três vezes. Só na terceira vez consegui ganhar. Trata-se de um prêmio em nível internacional, de nome poético, de conteúdo sério e bonito, promovido pela Fundação SM, que prioriza a leitura de textos de alta qualidade literária em livros com um belo projeto visual, que encantam e conquistam o leitor.

Qual o significado do Prêmio Barco a Vapor para você?
É uma resposta positiva ao meu trabalho com a linguagem. Uma alegria em descobrir que vale a pena sonhar e não abrir mão do meu projeto estético.

Se pudesse criar uma definição pessoal para a literatura, qual seria?
A literatura é como a vida, misteriosa e instigante.

Um comentário:

  1. Linda entrevista. Foi bom conhecer a Stella pessoalmente na Premiação do Barco a Vapor. Gente que faz a diferença. Abraços.

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