O Estado de S. Paulo - 05/11/2007 - por Simone Iwasso
Entrevista
Delia Lerner: educadora argentina
Consultora de órgãos governamentais em vários países, especialista afirma que as escolas não sabem ensinar leitura e escrita
Mesmo com todos os conhecimentos científicos sobre a aquisição da leitura e escrita desenvolvidos nos últimos 30 anos, a escola ainda insiste num foco equivocado: ensina a língua e não as práticas sociais vinculadas a ela. Ou seja, além de não conseguir dar sentido ao ato de ler e escrever, despertando o interesse do estudante, cobra nas avaliações o que não foi transmitido em sala de aula. A análise é da educadora argentina Delia Lerner, especialista da Universidade de Buenos Aires e consultora de diversos órgãos governamentais na América Latina, inclusive no Brasil, onde assessora o Ministério da Educação (MEC). Com a experiência de quem, além do trabalho acadêmico, mantém uma escola em Buenos Aires, que funciona como seu laboratório, Delia esteve no País em outubro para falar com educadores durante a Semana Victor Civita de Educação. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado.
Por que é tão difícil formar estudantes com autonomia para leitura e escrita?
Há dois problemas diferentes. Um deles é o próprio ensino de leitura e da escrita. O outro é se as avaliações aplicadas para verificar leitura e escrita estão realmente avaliando. Para mim, não é evidente que devemos ter confiança nos resultados dessas avaliações porque a leitura e escrita são processos que se desenvolvem com o tempo e, mesmo que seja importante para o sistema educacional ter uma fotografia instantânea do que se passa no momento, não é o que importa realmente para quem está olhando de dentro da classe. O importante é fazer com que os alunos avancem como leitores e escritores. Muitas provas são feitas à imagem e semelhança de provas internacionais - algumas inclusive são internacionais. Por exemplo, na Argentina houve muito escândalo quando se compararam os resultados da Finlândia com os da Argentina. Bom, é necessário nos questionarmos qual o sentido em comparar resultados de países tão diferentes. Escutei uma entrevista do ministro da Educação da Finlândia sobre a que ele devia tão bons resultados. Ele respondeu que os professores recebiam salários muito bons, estavam em constante formação e tinham excelentes condições trabalhistas. Isso, em relação à Argentina, já diz muita coisa sobre o nosso sistema, não sobre nossos alunos. Esse é um problema. O outro é que, no sistema educacional constituído, a leitura e a escrita como processos não são objeto de ensino. No caso da escrita, ela é objeto de avaliação, mas não de ensino. O que se visualiza como objeto de ensino tradicionalmente é a língua, não as práticas de linguagem vinculadas a ela.
Como mudar essa cultura de falta de ensino?
Não creio que seja só o professor que possa mudar algo. Há muitos que tentam. Um dos pontos mais elementares é que os professores, desde cedo, leiam muito para seus alunos. E leiam obras de qualidade. Ao menos na minha experiência, ler para as crianças é uma das medidas mais fáceis de serem inseridas no sistema escolar com resultado. É essencial que, desde o início da escolarização, leitura e escrita estejam dotadas do sentido que realmente têm. A escola entende que ler e escrever não são atividades que se aprendem só para ler e escrever, mas também para comunicar-se com outros, para informar-se sobre os outros, para apreciar as qualidades literárias de um autor, para pensar melhor, aprofundar as idéias. A escola precisa mostrar as situações nas quais se pode trabalhar escrita e leitura com propósitos tão interessantes quanto os que são oferecidos fora da escola.
Como o desenvolvimento científico e os avanços do conhecimento sobre o sistema cognitivo infantil, podem contribuir para o ensino?
Um aspecto fundamental do ensino é propor problemas cognitivos aos alunos porque, ao tentar respondê-los, eles estarão produzindo conhecimento como resposta. Dessa perspectiva, conhecer as idéias das crianças, como os processos que elas desenvolvem, é fundamental porque permite organizar situações didáticas nas quais as crianças podem intervir, que tipo de desafios eles podem conseguir resolver usando seus conhecimentos prévios, permite aproximar o ensino da aprendizagem. Essa aproximação é essencial para acabar com as altíssimas taxas do fracasso escolar. Para nós, foram um aporte muito forte os descobrimentos lingüísticos, os modelos de psicologia cognitiva sobre o modelo de escrita. Os estudos mais recentes focam muito no nível da palavra, que, para o uso com a aprendizagem, sabemos não ser suficiente. Então usamos menos os conhecimentos mais atuais. Em Buenos Aires, todas as escolas públicas têm laboratório de computação e todas as séries, uma ou duas vezes por semana, têm horários reservados para usar o computador. Agora, há uma diferença qualitativa quando existe um ajudante de um professor que é monitor desses laboratórios e quando tudo está nas mãos de um garoto que entende muito de computadores, mas nada de ensino. Com relação à leitura foi mais difícil por causa do hipertexto. Isso que estamos incorporando nas escolas que têm condições propõe muitos problemas didáticos. Como fazer para que os estudantes decidam se uma informação é confiável ou não? Como fazer com que eles a comparem com outras fontes de informação? Como lidar com a possibilidade de reprodução sem gerar condições didáticas para que os alunos sejam autores e não mescladores de textos de outras pessoas? Isso é mais difícil hoje. É um novo problema didático.
O que seria essencial que pais e professores soubessem?
Gostaria que todo mundo tivesse a possibilidade de descobrir que a leitura e a escrita são ferramentas de desenvolvimento pessoal importantes. Sempre me lembro de um especialista francês em leitura que fazia a seguinte atividade com os alunos: ir à biblioteca e analisar todos os livros que eles nunca leram. E descobrir por que não os leram. Com esse tipo de atividade, ele conseguia fazer os estudantes se interessarem mais e desenvolverem um senso crítico. Para que alguém se transforme em um não-leitor, que seja um não-leitor crítico, que saiba porque está lendo e porque não está lendo. Se alguma coisa as ferramentas tecnológicas fizeram foi obrigar as pessoas a ler. Crianças que não lêem passam o dia trocando mensagens pelo celular. As pessoas precisam descobrir o que estão perdendo quando não lêem. Se elas soubessem disso, muitos não-leitores se tornariam leitores. Muitas crianças não sabem o que podem encontrar na leitura. E seria muito bom se a escola conseguisse um dia lhes mostrar isso.
Mesmo com todos os conhecimentos científicos sobre a aquisição da leitura e escrita desenvolvidos nos últimos 30 anos, a escola ainda insiste num foco equivocado: ensina a língua e não as práticas sociais vinculadas a ela. Ou seja, além de não conseguir dar sentido ao ato de ler e escrever, despertando o interesse do estudante, cobra nas avaliações o que não foi transmitido em sala de aula. A análise é da educadora argentina Delia Lerner, especialista da Universidade de Buenos Aires e consultora de diversos órgãos governamentais na América Latina, inclusive no Brasil, onde assessora o Ministério da Educação (MEC). Com a experiência de quem, além do trabalho acadêmico, mantém uma escola em Buenos Aires, que funciona como seu laboratório, Delia esteve no País em outubro para falar com educadores durante a Semana Victor Civita de Educação. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado.
Por que é tão difícil formar estudantes com autonomia para leitura e escrita?
Há dois problemas diferentes. Um deles é o próprio ensino de leitura e da escrita. O outro é se as avaliações aplicadas para verificar leitura e escrita estão realmente avaliando. Para mim, não é evidente que devemos ter confiança nos resultados dessas avaliações porque a leitura e escrita são processos que se desenvolvem com o tempo e, mesmo que seja importante para o sistema educacional ter uma fotografia instantânea do que se passa no momento, não é o que importa realmente para quem está olhando de dentro da classe. O importante é fazer com que os alunos avancem como leitores e escritores. Muitas provas são feitas à imagem e semelhança de provas internacionais - algumas inclusive são internacionais. Por exemplo, na Argentina houve muito escândalo quando se compararam os resultados da Finlândia com os da Argentina. Bom, é necessário nos questionarmos qual o sentido em comparar resultados de países tão diferentes. Escutei uma entrevista do ministro da Educação da Finlândia sobre a que ele devia tão bons resultados. Ele respondeu que os professores recebiam salários muito bons, estavam em constante formação e tinham excelentes condições trabalhistas. Isso, em relação à Argentina, já diz muita coisa sobre o nosso sistema, não sobre nossos alunos. Esse é um problema. O outro é que, no sistema educacional constituído, a leitura e a escrita como processos não são objeto de ensino. No caso da escrita, ela é objeto de avaliação, mas não de ensino. O que se visualiza como objeto de ensino tradicionalmente é a língua, não as práticas de linguagem vinculadas a ela.
Como mudar essa cultura de falta de ensino?
Não creio que seja só o professor que possa mudar algo. Há muitos que tentam. Um dos pontos mais elementares é que os professores, desde cedo, leiam muito para seus alunos. E leiam obras de qualidade. Ao menos na minha experiência, ler para as crianças é uma das medidas mais fáceis de serem inseridas no sistema escolar com resultado. É essencial que, desde o início da escolarização, leitura e escrita estejam dotadas do sentido que realmente têm. A escola entende que ler e escrever não são atividades que se aprendem só para ler e escrever, mas também para comunicar-se com outros, para informar-se sobre os outros, para apreciar as qualidades literárias de um autor, para pensar melhor, aprofundar as idéias. A escola precisa mostrar as situações nas quais se pode trabalhar escrita e leitura com propósitos tão interessantes quanto os que são oferecidos fora da escola.
Como o desenvolvimento científico e os avanços do conhecimento sobre o sistema cognitivo infantil, podem contribuir para o ensino?
Um aspecto fundamental do ensino é propor problemas cognitivos aos alunos porque, ao tentar respondê-los, eles estarão produzindo conhecimento como resposta. Dessa perspectiva, conhecer as idéias das crianças, como os processos que elas desenvolvem, é fundamental porque permite organizar situações didáticas nas quais as crianças podem intervir, que tipo de desafios eles podem conseguir resolver usando seus conhecimentos prévios, permite aproximar o ensino da aprendizagem. Essa aproximação é essencial para acabar com as altíssimas taxas do fracasso escolar. Para nós, foram um aporte muito forte os descobrimentos lingüísticos, os modelos de psicologia cognitiva sobre o modelo de escrita. Os estudos mais recentes focam muito no nível da palavra, que, para o uso com a aprendizagem, sabemos não ser suficiente. Então usamos menos os conhecimentos mais atuais. Em Buenos Aires, todas as escolas públicas têm laboratório de computação e todas as séries, uma ou duas vezes por semana, têm horários reservados para usar o computador. Agora, há uma diferença qualitativa quando existe um ajudante de um professor que é monitor desses laboratórios e quando tudo está nas mãos de um garoto que entende muito de computadores, mas nada de ensino. Com relação à leitura foi mais difícil por causa do hipertexto. Isso que estamos incorporando nas escolas que têm condições propõe muitos problemas didáticos. Como fazer para que os estudantes decidam se uma informação é confiável ou não? Como fazer com que eles a comparem com outras fontes de informação? Como lidar com a possibilidade de reprodução sem gerar condições didáticas para que os alunos sejam autores e não mescladores de textos de outras pessoas? Isso é mais difícil hoje. É um novo problema didático.
O que seria essencial que pais e professores soubessem?
Gostaria que todo mundo tivesse a possibilidade de descobrir que a leitura e a escrita são ferramentas de desenvolvimento pessoal importantes. Sempre me lembro de um especialista francês em leitura que fazia a seguinte atividade com os alunos: ir à biblioteca e analisar todos os livros que eles nunca leram. E descobrir por que não os leram. Com esse tipo de atividade, ele conseguia fazer os estudantes se interessarem mais e desenvolverem um senso crítico. Para que alguém se transforme em um não-leitor, que seja um não-leitor crítico, que saiba porque está lendo e porque não está lendo. Se alguma coisa as ferramentas tecnológicas fizeram foi obrigar as pessoas a ler. Crianças que não lêem passam o dia trocando mensagens pelo celular. As pessoas precisam descobrir o que estão perdendo quando não lêem. Se elas soubessem disso, muitos não-leitores se tornariam leitores. Muitas crianças não sabem o que podem encontrar na leitura. E seria muito bom se a escola conseguisse um dia lhes mostrar isso.
* Foto adicional: Magdalena Gutierrez (Nova Escola)
* Ler a reportagem » É preciso das sentido à leitura
in Nova Escola - Edição 95 - setembro de 2006.
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* Ler a reportagem » É preciso das sentido à leitura
in Nova Escola - Edição 95 - setembro de 2006.
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